O MUNDO está dentro de cada CASA




Primeiras Reflexões sobre A Casa e o Mundo lá fora – Cartas de Paulo Freire para Nathercinha.
Texto de Bruno Peixoto Cordeiro. 
Ator, Dramaturgo e Diretor.
En La Barca Jornadas Teatrais.

Completadas as primeiras 30 apresentações desse trabalho, já alcançamos o distanciamento necessário para analisar suas potencialidades sem correr o risco de fazer um exercício especulativo sobre as suas qualidades e limitações.  O trabalho em questão é a terceira parte da Trilogia Documental – A Voz dos Anônimos, ciclo de pesquisas iniciado pela En La Barca Jornadas Teatrais em 2017 com Antônio de Gastão – Memória é Trabalho e Lugar de Cabeça Lugar de Corpo, outros dois projetos dessa trilogia. Estão estreitamente vinculados aos princípios do Teatro Documentário, tradição teatral que une os três trabalhos dentro de uma mesma assinatura artística, norte e ferramenta principal de abordagem de temáticas sociais tão diversas quanto a Cultura Popular, a Luta AntiManicomial e a Educação Pública.

Outro elemento fundamental que aparece como a argamassa que une tijolos de naturezas tão distintas está no uso da Memória como ponto de ligação não somente entre os três trabalhos dessa trilogia, mas, principalmente, entre os dois principais criadores da cena: o espectador e o artista. Sobre esse ponto, vale um parágrafo de desenvolvimento específico, mas o que já vale destacar, é que no processo de criação desses trabalhos, aprendemos a escrever a palavra Memória de forma substantiva, com letras maiúsculas, uma ciência irmã da ciência da História; algo bem distante da memória como um exercício de nostalgia pessoal ao acessar as lembranças mais caras ou mesmo da memória como forma de falar dos sentimentos universais de todo o ser humano. Contraditoriamente, é essa primeira memória o ponto de partida e também o portão de entrada na relação com o espectador. E foi analisando isso coletivamente que Anna Fernanda, atriz e narradora guia de A CASA e o MUNDO lá fora – Cartas de Paulo Freire para Nathercinha, sintetizou e conceituou um princípio de trabalho presente em todos os trabalhos da trilogia:

Nós partimos da memória individual para falar da Memória Coletiva.

Nesse princípio de trabalho, cabe a atriz ou ator em questão, ao dramaturgo e ao diretor, também o papel de Memorialistas e Documentaristas. Contamos uma história para falar da nossa História. Ou, o que está no Mundo, está dentro de cada Casa. Isso interfere diretamente na definição do processo criativo e esclarece o nosso uso do Teatro Documentário na sua formulação mais radical (*1), feita pelo dramaturgo alemão Peter Weiss, nos anos 1960 (*2).




fotos: Marcelo Valle
Dezembro de 2019 - Rio de Janeiro

Em linhas gerais, o Teatro Documentário se estrutura dramaturgicamente a partir do uso de relatos reais presentes em cartas, entrevistas, fotos, filmes, dados estatísticos, matérias jornalísticas e demais materiais similares. Por si só, isso distancia a abordagem dramatúrgica da lógica de conflito e tensão dramática presente em 90% dos textos teatrais. Portanto, qualquer crítica efetuada a partir dessa ótica, ou de um entendimento do Teatro apenas sobre essa ótica, é uma crítica inútil. É como criticar um time de vôlei a partir dos princípios do futebol. Existem o espaço, os jogadores e a bola, mas as regras do jogo são completamente diferentes. A matéria histórica é tão importante na sua formulação artística que muitos segmentos acadêmicos, com uma dose considerável de desonestidade intelectual, chegaram a defini-lo como Anti-Teatro.

Em A CASA e o MUNDO lá fora – Cartas de Paulo Freire para Nathercinha, a primeira matéria histórica geradora foi uma carta. Uma carta escrita em meados dos anos 60 por uma criança de 9 anos a um primo querido e distante. Até aí, estamos dentro do território caloroso e solar da memória individual e dos sentimentos universais. A criança em questão escreveu uma série de cartas e essas cartas estão até hoje desconhecidas do público. Temos acesso apenas às cartas de resposta do seu primo – Paulo Freire, narrando para uma criança, os primeiros dos seus 15 anos de exílio na Bolívia, Chile, EUA e Suíça.


fotos: Teo Arrabal
Setembro de 2019 - Macaé - RJ


Dario Fo defende a ideia de que a cena não parte de um texto, mas de uma situação. A situação inicial estava dada, e essa situação já abraçava o nosso princípio de trabalho de partir de uma memória individual para tocar (e debater) uma Memória Coletiva. Sérgio de Carvalho, dramaturgo e diretor, fundador da Companhia do Latão, em São Paulo, coloca a Ingenuidade como uma categoria épica. Uma ferramenta preciosa para trabalhar cenicamente a desnaturalização das estruturas sociais e dos processos históricos, compromisso principal de todo bom Teatro Político. A imagem da criança de 9 anos como ponto de partida era o elemento de inocência a ser utilizado nas primeiras relações com o(a) espectador(a). E se na primeira parte, a Casa era o Mundo da criança (não é assim para tantas crianças?), nas partes seguintes o Mundo se apresenta de forma mais complexa, e tanto a criança quanto o (a) espectador(a) precisam de mais dados para realizar a sua devida leitura.

Esses dados não viriam apenas das cartas e da narrativa de Nathercia Lacerda, autora das cartas e do livro que nos serviu como ponto de partida e batismo de trabalho. Precisávamos de outras matérias históricas vindas não somente de relatos de Paulo Freire e de seus preciosos escritos sobre Educação Popular. Mas também, dos muitos anônimos alfabetizados por ele nos seus primeiros anos de militância pedagógica nos rincões do Nordeste brasileiro.

Aqui vale destacar o compromisso ético de nossa metodologia de trabalho e do respeito que devemos ter ao tocar cenicamente na memória de tantos indivíduos. Muitos dos retratados e narrados nos projetos dessa Trilogia Documental, ainda estão vivos. Como estão vivos os seus filhos e netos. As matérias históricas que essas pessoas nos entregam são também, a sua vida pessoal. Suas histórias individuais e a história de suas famílias.

A entrega dessas Memórias configura-se num gesto de confiança que se transforma em uma cumplicidade única entre os narradores da cena e os primeiros narradores das histórias em questão. Esse entendimento do trabalho com a Memória e a delicada relação entre “retratados” e “retratistas” será tema de outro ensaio.  

Nathercia Lacerda nos ofereceu uma porta de entrada única para abordar a obra de Paulo Freire. Uma das urgências desse projeto é justamente se estabelecer como uma linha de defesa e de reflexão de sua trajetória em um momento histórico de intensos ataques a sua atuação e ao seu legado. Escolho bem a palavra ataque, para deixar bem claro que a prática recente de “fake news” sobre ele pouco tem de atitude crítica. É um posicionamento de classe, nascido dos mesmos adversários que o expulsaram do Brasil nos anos 1960, e reverberado de forma irresponsável por tantos a quem faltam o devido exercício da leitura de mundo. Em bom português, é Luta de Classes, nada mais. Crítica é coisa mais séria, e é um exercício que Paulo Freire sempre respeitou e se mostrou pronto a ouvir e debater, como bom pedagogo democrata e dialético que aprendeu a ser. Vamos guardar a palavra “Crítica” para o seu devido uso.

Ao entrar na porta aberta por Nathercia Lacerda e mergulhar na multiplicidade do pensamento freireano fomos obrigados a fazer escolhas fundamentais. Não nos interessava realizar um exercício biográfico e a linha de defesa citada no parágrafo anterior, por si só, não bastava. Tanto eu quanto Anna Fernanda, a linha de frente desse trabalho, somos filhos de professoras. De professoras de escolas públicas. Crescemos ouvimos as inúmeras histórias de dificuldades e pequenas superações. Dos alunos problemáticos, de professores ausentes, da precariedade das salas; enfim, a história narrada por Darcy Ribeiro na conhecida frase “A crise da educação brasileira não é uma crise. É um projeto”. Precisávamos falar da Educação Pública para além do papel do professor. Precisávamos falar do papel do Estado.

 E não é um exercício de fácil execução a encenação do Estado.

Selecionamos três obras de Paulo Freire para catalogar relatos e princípios fundamentais que pudessem nos guiar nesse caminho: Pedagogia do Oprimido, Pedagogia da Autonomia e Pedagogia da Esperança. Ouvimos horas de material gravado contendo documentários, entrevistas, palestras e filmes institucionais. Parte desse material é utilizado em cena com ferramenta dramatúrgica de construção e interrupção de cenas. Queríamos aprimorar na encenação, fundamentos e características presentes nos outros dois trabalhos de nossa trilogia:  A formulação de um Teatro Pedagógico (no melhor sentido, ou no sentido mais freireano da palavra Pedagógico) e a experiência de um Teatro de Intervenção, capaz de ser levado a qualquer espaço com as dimensões mínimas exigidas, sem perder a teatralidade que o sustenta. Nesse sentido, essas escolhas foram também um exercício crítico e, aqui, consideramos que a palavra Crítica tem o seu devido uso.


fotos: Luciano Barbosa
Dezembro de 2018 - Cabo Frio - RJ


O exercício do Teatro de Intervenção é um exercício de democratização das trocas culturais na relação entre artista e seu público. Para nós, também uma necessidade artística de encontrar um público mais heterogêneo e plural em termos de faixa etária, classe social, e cor. A necessidade de encontrar um público que não tenha as mesmas regras de bom comportamento do público que frequenta as salas de teatro tradicionais. Nesse sentido, é a constatação que, hoje, o prédio teatral é um espaço para poucos, por mais libertárias e pertinentes que sejam muitas das bandeiras levantadas por tanto(a)s colegas de ofício. Pior, esses poucos traçam um retrato muito homogêneo da sociedade brasileira e torna o diálogo criativo artista – espectador (a) excessivamente previsível, pouco dialético e de valor de uso questionável no debate sobre as contradições da sociedade brasileira. O palco italiano e o prédio teatral tradicional são bem vindos, mas não são uma exigência ou uma necessidade desse trabalho. Pelo contrário, das 30 apresentações realizadas até agora, apenas 5 foram em palcos italianos. O restante foi realizado em escolas públicas, universidades, associações, sindicatos, museus e espaços culturais alternativos. (*3)

Por outro lado, defender a ideia de um Teatro Pedagógico é tocar em um tipo de “racismo estrutural” presente no meio teatral e em grande parte dos setores acadêmicos destinados ao estudo do fenômeno teatral. Vamos partir do senso comum e das frases que mais aparecem nesses momentos: “Isso não é Teatro”. “Isso não é artístico”. “A Arte deve ser outra coisa” Os que criticam o que chamam de didatismo da cena, em maior ou menor grau, fazem parte da mesma corrente dos que consideram o Teatro Político como algo “não artístico”. O lugar da Arte estaria destinado apenas a representação do belo e dos “sentimentos universais do homem”. Também há os colegas que elaboram um pouco mais o pensamento e veem com reservas o Teatro Político pela forma contundente como defendem algumas bandeiras e alguns segmentos e movimentos sociais. Consideram que o artista deve tomar partido na vida, mas não em cena, pois isso diminuiria o valor artístico de sua representação; e que, para a cena ser mais complexa e dialética (e “artística”?), o artista não deveria defender nem o lado A nem o lado B, apenas mostrar como ambos se comportam para que o espectador possa se posicionar. Mais uma vez a visão da arte como uma entidade colocada em uma espécie de Monte Olimpo, acima de todas as tensões sociais, onde os artistas veem melhor do que todos (*4).  Brecht diria a esse respeito que “não é necessário turvar as águas do rio para mostrar que ele é profundo”. Peter Weiss é mais sucinto. Uma de suas notas abre com uma frase inequívoca:

O Teatro Documentário Toma Partido.

Passado o terreno espinhoso da exposição do lugar comum de muitas críticas ao que chamamos de Teatro Pedagógico, resta saber como esse princípio é trabalhado em A CASA e o MUNDO lá fora – Cartas de Paulo Freire para Nathercinha e porque é tão importante para nós artisticamente e politicamente. Antes, um devido esclarecimento de terminologias e de como a entendemos em nosso trabalho. Para nós, o didatismo é esquemático e a pedagogia é dialógica. O didatismo simplifica a leitura do mundo (e a sua posterior representação cênica). A(s) pedagogia(s) cria(m) métodos para que essa leitura seja feita a partir de escolhas ideológicas e éticas.

Dando um passo atrás. A pedagogia pode ser considerada a forma como, nas relações sociais humanas, o fenômeno do aprendizado é realizado, a nível individual e coletivo. Nesse sentido, para alguns a experiência do aprendizado é um fardo. Para outros, uma forma de participação e pertencimento. Essa experiência do aprendizado (ou de revisita a experiência do aprendizado) é uma etapa anterior para chegar à experiência fundamental que nos interessa na nossa relação com o (a) espectador (a): a experiência da Leitura de Mundo. Talvez, uma das raízes do pensamento freireano, sintetizadas em uma de suas mais belas frases: “Mais importante do que ler as palavras, é ler o mundo”.

E aqui temos mais um ponto que nos faz revisitar o princípio da Crítica a partir de um mirante que Paulo Freire aborda muito bem em seus escritos e na sua ampla experiência prática direta. Paulo Freire coloca a curiosidade infantil como um elemento fundamental para que a experiência do aprendizado não seja vivenciada com uma espécie de fardo. Nos primeiros “Por quês?” das crianças estão explicitadas justamente questionamentos individuais e sociais que estamos acostumados a naturalizar. Na primeira infância, o Mundo não é um fato dado. É um organismo social a ser decifrado.  A experiência do aprendizado aproxima-se do fardo, na medida em que o Mundo (e, portanto sua leitura) torna-se cada vez mais determinista e imutável. E aqui recorremos à outra das frases mais sintéticas do pensamento freireano: “O Mundo não é. O Mundo está sendo”. A curiosidade infantil aproxima-se do que já dissemos da Ingenuidade ser uma categoria épica, o que nos remete de imediato a imagem geradora dessa encenação. Uma criança de 9 anos que escreve uma carta a um primo querido distante. Sobre a Ingenuidade como uma etapa fundamental do processo de aprendizado (e, consequentemente, do processo de leitura de mundo), cabe citar um dos milhares de anônimos alfabetizados diretamente por Paulo Freire:

 “Talvez seja eu, entre os senhores,
o único de origem operária.
Não posso dizer que tenha entendido todas as palavras que foram ditas aqui,
 mas uma coisa posso afirmar:
Cheguei a esse curso ingênuo e,
ao descobrir-me ingênuo,
comecei a me tornar crítico.”
 (*5)

A defesa de um Teatro Pedagógico, portanto parte em primeiro lugar do posicionamento (político) de que o Mundo é antes de tudo, um espaço social passível de transformação. E de que a experiência do aprendizado é um dos caminhos para que essa transformação seja feita. Nesse sentido, a experiência teatral não precisa camuflar a riqueza de um elemento social que deveria estar exposto na encenação, e não servir como pano de fundo nas relações humanas entre “protagonistas”, “antagonistas” e “coadjuvantes” da história a ser contada (não vamos turvar as águas do rio). Nesse ponto, fica claro, que o entendimento político da questão a ser debatida e o seu consequente posicionamento, determinam a escolha de abordagem artística e das técnicas e referências que utilizamos. O que é um indicativo de como uma escolha de técnicas (e abordagem) artísticas para se criar uma peça é, antes de tudo, uma escolha política. As técnicas artísticas são sim ferramentas ideológicas, por mais que alguns segmentos tentem camuflar esse fato.

Sobre esse ponto, Luiz Fernando Lobo, ator, dramaturgo e diretor da Companhia Ensaio Aberto, cita incessantemente em seus processos artísticos, um dos princípios fundamentais da práxis brechiana:

 “As técnicas que servem para aclarar a realidade,
 não são as mesmas técnicas que servem para esconder a realidade”.
(*6)



fotos: Bruno Peixoto
Setembro de 2018 - São Paulo 

A CASA e o MUNDO lá fora – Cartas de Paulo Freire para Nathercinha se apresenta como um trabalho de natureza extremamente gestual (*7). Nessa abordagem, ganha especial importância na encenação, o uso dos muitos objetos utilizados em cena pelos atores. Os objetos têm tanta importância na dramaturgia cênica que, para efeito de melhor precisão terminológica, substituímos o termo “objetos de cena” por “objetos narrativos”. Ou seja, os objetos não constituem uma ambientação do espaço, mas se tornam uma ferramenta do discurso da encenação, assumindo muitas vezes o lugar de protagonismo da cena, com voz e discursos próprios. Ou, quando a atriz-narradora cala, são os objetos que falam. Também aí, no uso dos objetos, está uma metodologia de trazer a cena de forma concreta o tema da Memória (*8) e seus respectivos desdobramentos. Afinal, se consideramos o nosso trabalho com a Memória como uma ponte para se chegar a uma reflexão da História, é no uso e no consequente discurso dos objetos, que a História se coloca em forma teatral e artística. Uma das técnicas que se destacam nessa função de historicização da cena é justamente um fundamento largamente utilizado por Bertolt Brecht, Piscator e grande parte do teatro operário: a literatização da cena, ou seja, uso de palavras escritas como ferramenta de interrupção da cena, de exposição da narrativa e suas respectivas partes, de seleção de temas principais, de denúncia do contraditório entre palavra escrita e palavra falada.  Se o discurso do objeto nasce do gesto, é na relação artista-objeto-espectador(a), puxados pelo fio delicada das tantas memórias presentes, que construímos toda a poética da cena.

E aqui nos cabe falar do papel destinado ao espectador (a). Nos apontamentos sobre a importância do Teatro Pedagógico e sobre a abordagem da Memória como elementos pertencentes à tradição do Teatro Épico já deixamos entrever o papel do espectador como um elemento ativo, produtivo e criativo, que interfere diretamente no ritmo da cena e na construção do seu discurso e dos seus múltiplos pontos de vista. Para que isso aconteça a elementos técnicos presentes na construção das cenas, no uso dos objetos e no registro de interpretação, dentro do que convencionamos internamente como ator-atriz-narrador(a) (*9). O que equivale dizer que cada vez que tocamos nesses temas, estávamos também pensando em uma relação com o espectador (a) que dividisse com ele(a) o papel de criador(a) da cena (“O público é o quarto criador”, já nos dizia Meyerhold). Nesse ponto, há também uma crítica a um tipo de teatro hegemônico responsável por adestrar o público dentro de regras de bom comportamento que tornam o fenômeno teatral mais previsível e menos dialético. É o que Dario Fo chama de público que vai ao teatro apenas para fazer uma boa digestão. Nos seus apontamentos sobre a necessidade de um público ativo, o mestre italiano nos dá indicativos poderosos (*10). Um dos mais interessantes começa com uma pergunta simples: “Como podemos individualizar o caráter do público?”. Já nessa formulação está problematizada a importância de um público heterogêneo que não reaja de forma homogênea aos mesmos estímulos da cena.

Uma das metodologias narradas por Dario Fo está no uso que se faz do espaço e em como transformar o espaço cênico em um espaço de pertencimento para essa plateia. Aqui retornamos ao nosso uso do espaço a partir de outro ponto de vista. O que Dario Fo coloca, é que a construção do espaço cênico abarca todo o espaço do fenômeno teatral e não somente os limites do palco. O espaço cênico não apenas como uma construção do cenógrafo (a), mas como uma criação aberta que começa pelo cenógrafo(a) e se complementa com os trabalhos do diretor(a), do ator, da atriz e também do espectador(a). Nesse entendimento do que deve ser o espaço cênico épico, cabe ao público o papel de coro da encenação (e algumas vezes de protagonismo na cena). Esses apontamentos mais do que justificam a nossa escolha inicial de criar uma arena para a representação de A CASA e o MUNDO lá fora – Cartas de Paulo Freire para Nathercinha. Nessa disposição de arena, para nós é fundamental que o público se veja como parte da cena, parte das suas problematizações e contradições. Parte da História sendo narrada, um dos muitos anônimos que pertencem a nossa trilogia. Nesse ponto, sempre lamentamos uma ligeira perda de comunicação nas nossas adaptações para o palco italiano. É o espaço falando de forma diferente da planejada inicialmente. Há uma série de apontamentos a serem explorados a respeito do papel do espectador na construção do fenômeno teatral e na importância da formação de um novo público para o nosso Teatro. Mas podemos deixar isso para uma reflexão específica futura sobre tema tão rico. (*11)

Entre tantas reflexões, algumas delas ainda incompletas, reflexões acompanhadas por um número considerável de referências; talvez seja difícil perceber um dado simples – Nós fazemos Teatro Popular. Na forma e no conteúdo. E podemos dizer que a grande maioria das referências que apresentamos, tornaram-se referências não somente para nós, mas para inúmeros coletivos artísticos, quando voltaram seus estudos e mudaram suas práticas, a partir da aproximação com as formas populares de representação (e leitura) do Mundo. E aqui, vale o mesmo cuidado ético demonstrado na abordagem da Memória. A aproximação com as formas populares de representação não podem transformar essas mesmas formas em uma mercadoria de consumo artístico, algo presente na forma e ausente no conteúdo.

O nosso formato de circulação e de democratização das trocas culturais não é novo. Hoje é experimentado por um sem número de coletivos teatrais no Brasil, todos herdeiros (conscientes ou não) das reflexões e experimentações feitas a partir dessas mesmas inquietações pelo CPC da UNE entre os anos de 1962 e 1964 (*12). Ao reafirmar nossa posição nessa linha de produção como um coletivo ligado ao Teatro Popular estamos não apenas nos contrapondo a todos os princípios questionáveis e passíveis de transformação que norteiam o Teatro Hegemônico, mas também reafirmando o compromisso ético de dar a devida importância na cena aos anônimos que costumam ficar de fora dela. A Arte Popular é um organismo vivo com séculos de atuação e história, sempre em constante transformação. De autoria sempre imprecisa e nebulosa. Perpetuada pelo trabalho incessante de um número incontável de anônimos e anônimas aparentemente sem voz.

Em nosso Teatro, esses Anônimos têm Voz.

Nesses apontamentos estão reflexões feitas a partir da primeira jornada de 30 apresentações de A CASA e o MUNDO lá fora – Cartas de Paulo Freire para Nathercinha. E nessas reflexões, uma práxis de anos de pesquisa continuada com numerosos companheiros, companheiras de ofício e inúmero(a)s colaboradores em um tipo de Teatro de ampla responsabilidade social. É impossível citar ou agradecer a todos nominalmente. Há em nós o compromisso de levar até a cena os temas, histórias e pessoas que estão ausentes dos palcos. Como nós, muitos outros artistas e coletivos assumem o mesmo compromisso. Mas cabe retornar até a imagem geradora de todo esse movimento. A imagem data do ano de 1967, no Rio de Janeiro. Uma criança de 9 anos escreve uma carta ao seu primo distante. Para uma criança, a sua casa é o seu Mundo. Aquela criança ainda não sabia, mas naquele momento o Mundo começava a fazer parte da sua casa. Um Mundo envolvido em muitos conflitos e contradições assim como o Mundo envolvido em semelhantes conflitos e contradições que estamos vivendo agora. Um mundo em transformação, diria Paulo Freire. A ingenuidade é uma categoria épica, vamos relembrar. Aquela criança não falava apenas de si ou do primo. Falava do Mundo.  Não sabia disso no momento. Hoje ela sabe.

Essa história chegou até nós em uma das apresentações de Antônio de Gastão – Memória é Trabalho, quando Nathercia Lacerda nos deixou um livro. Um livro com suas narrativas de menina.

À Nathercia Lacerda, a nossa gratidão. A menina Nathercinha continua viva e atenta ao Mundo em constante transformação.



Da esquerda para a direita: Anna Fernanda, Nathercia Lacerda, Denise Sampaio Gusmão, Bruno Peixoto e Cristina Laclette Porto
Setembro de 2019 - São Paulo


NOTAS DE RODAPÉ


(*1) Considerando que o senso comum deturpou o uso da palavra radical do seu verdadeiro significado, Paulo Freire destina um parágrafo precioso dos seus muitos escritos para traçar a devida diferença entre radicalismo e sectarismo (ou extremismo). O entendimento de Paulo Freire sobre o que é ser radical, é também o nosso entendimento. O parágrafo consta das Primeiras Palavras de Pedagogia do Oprimido, págs 33 e 34. Segue sua leitura:

“Esse ensaio irá provocar em alguns de seus possíveis leitores, reações sectárias. Daí que seja este, com todas as deficiências de um ensaio puramente aproximativo, um trabalho para homens radicais. É que a sectarização é sempre castradora, pelo fanatismo de que se nutre. A radicalização ao contrário, é sempre criadora, pela criticidade que a alimenta. Enquanto a sectarização é mítica, por isso alienante, a radicalização é crítica, por isso libertadora. Libertadora porque, implicando o enraizamento que os homens fazem na opção que fizeram, os engaja cada vez mais no esforço de transformação da realidade concreta, objetiva.”

(*2) Para muitos estudiosos o Teatro Documentário surgiu a partir do texto A Morte de Danton, de Gerg Büchner, no século XIX. Teve inúmeras experimentações nos anos 20 e 30 principalmente dentro do Teatro Operário Alemão e Russo e foi sistematizado por Peter Weiss no ensaio Notas Sobre o Teatro Documentário. Nós partimos desse documento como uma das principais referências. No nosso blog disponibilizamos esse ensaio na íntegra com tradução de Luiz Fernando Lobo e Otoni Araújo.

(*3) Sobre o tema do espaço de representação, Peter Weiss destina um luminoso tópico de Notas sobre o Teatro Documentário para problematizá-lo da maneira devida:

“13.     As tentativas do Teatro Documentário de encontrar uma forma de expressão convincente estão ligadas a busca de um lugar apropriado. Se a representação é feita num palco comercial com preços elevados o teatro documentário fica prisioneiro do sistema que ele pretende combater. Se for feito em espaços alternativos ele estará fadado a lugares frequentados por pessoas que já tem a mesma opinião.  No lugar de ter uma influência real sobre a situação ele dá uma prova de ineficiência perante a ordem estabelecida.  O teatro documentário deve conseguir penetrar nas fábricas, nas escolas, nos estádios e pavilhões.  Da mesma forma que ele abandona os cânones estéticos do teatro tradicional ele deve colocar seus próprios métodos em questão e desenvolver novas técnicas adaptadas às situações novas. “

(*4 ) (Para ser justo, parte dessas muitas reservas são originadas pelo que Sérgio Carvalho chama de mau Teatro Político. O Teatro Político que se coloca acima do espectador e vê nesse espectador um sujeito a ser convertido. Um Teatro Político feito mais de gritos do que de argumentos. Sobre o “valor artístico” do Teatro Político, vale ressaltar que grande parte das vanguardas artísticas do século XX, que redefiniram muitos rumos e tendências teatrais, surgiu especialmente do movimento de artistas que conjugaram fazer teatral com formação política. Destaco os nomes de Meyerhold, Maiakoviski, Brecht, Piscator, Vianinha, Gianfrancesco Guarnieri, Dario Fo... A lista é longa)

(*5) Pedagogia do Oprimido. Primeiras Palavras. Pg32.

(*6)  Sobre o tema do uso da escolha do uso de técnicas e influências artísticas para a abordagem de temas políticos, cabe a leitura do ensaio - As Ideias Fora do Lugar – de Roberto Scharz.

(*7) Considerando a ampla gama de trabalhos teatrais de forte assinatura gestual,  com variadas referências artísticas, estamos escolhendo como principal entendimento de um Teatro Gestual, a abordagem analisada por Walter Benjamin em seu ensaio “O que é Teatro Épico”, onde ele esmiúça o conceito de gestus social utilizado por Bertolt Brecht em seus trabalhos. Sobre o tema do gesto teatral, vale relembrar uma das grandes sínteses da poética brechiana: “As palavras mentem. Os gestos falam”.

(*8) Lembrando sempre de um dos nossos princípios de trabalho que é partir da Memória Individual para chegar a Memória Coletiva, e que toda a nossa abordagem sobre o fenômeno da Memória como um elemento da vida social partem dos escritos de Eclea Bosi.

(*9) O nosso entendimento da função social dos Narradores parte do ensaio – O Narrador, de Walter Benjamin.
  
(*10) Em Manual Mínimo do Ator, Dario Fo, aborda a questão do público em três tópicos principais: NÃO CAIR NA TUMBA (pgs  171 e 172), COMO EDUCAR O PÚBLICO (pgs 190 e 191) e CHUTES NA CARA DO ESPECTADOR APÁTICO (pgs 193 a 196).

(*11) Ainda sobre a questão do público, cabe registrar a conceituação ideal de publico para Bertolt Brecht como o Público dos Esportes, um público vibrante, apaixonado e que domina todas as regras do jogo, podendo, portanto fazer todo o exercício crítico de como o jogo está sendo executado.

(*12) Para maior clareza desse momento histórico recomenda-se a leitura do ensaio DO ARENA AO CPC, de Oduvaldo Vianna Filho (Vianinha). 











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