ANTÔNIO DE GASTÃO - MEMÓRIA É TRABALHO.


“A gente escreve o que ouve. Nunca o que houve.” Oswald de Andrade


Antônio de Gastão, pescador, poeta, escultor, músico, bonequeiro, contador de histórias que viveu em Cabo Frio ao longo de quase todo o século XX. Um legítimo exemplo de artista popular. Instigado pelo desejo de escrever um livro que contasse a história de sua terra mostrando os inúmeros personagens populares que a história oficial esconde, reúne-se com os pesquisadores Ricardo Gomes Lima e Amena Mayall em um projeto de pesquisa e resgate da memória que durou muitos anos, gerou horas de material gravado e fotografado e que foi responsável pela criação do livro: ANTÔNIO DE GASTÃO – PESCADOR DE CABO FRIO, integrante da série O ARTISTA POPULAR E SEU MEIO, um projeto do Ministério da Cultura e da FUNARTE que vigorou durante os anos de 1980. O livro foi lançado fiel ao desejo do velho artista popular. Um rico relato em primeira pessoa narrando a história de uma terra em grande transformação sob o ponto de vista único de um de seus artistas populares mais genuínos.  Dentro da tradição do TEATRO DOCUMENTÁRIO, mergulhamos nesse vasto material que incluiu entrevistas, artigos, ensaios e teses de mestrado e resgatamos para a cena teatral o que no livro está apenas sugerido – o complexo jogo de narradores e narrativas que uniu e influenciou personalidades tão diversas com origens tão distintas como Sêo Antônio, Ricardo e Amena em torno de um projeto comum.  


Antônio de Gastão, Amena Mayall e Ricardo Gomes Lima. Foto: Acervo Museu do Folclore: FUNARTE.




Fotos: Acervo Museu do Folclore. FUNARTE.


“O teatro documentário toma partido.” Peter Weiss


O teatro documentário é hoje um gênero teatral de forte tradição na Europa onde de tempos em tempos se reinventa a partir de novos experimentos de grupos teatrais e artistas europeus. Teve sua formulação mais completa feita pelo dramaturgo alemão Peter Weiss nos anos 60 a partir de uma de suas obras mais conhecidas e emblemáticas – O Interrogatório. Possui grande vocação para a reflexão de temas políticos e é herdeiro direto das tradições teatrais que assumiram essa responsabilidade diante da sociedade e do seu ofício, como o Teatro Épico de Bertolt Brecht entre os anos 20 e os anos 50, os teatros políticos de Piscator e Meyehold nos conturbados anos 20, as experiências de inúmeros coletivos teatrais de Agitiprop na Europa e na América Latina, além dos trabalhos do diretor italiano Giorgio Sthreller no Picollo Tiatro di Milano nos anos que sucederam o fim da Segunda Guerra Mundial. 

A grande especificidade do Teatro Documentário está em levar para a cena documentos reais do tema que se deseja abordar em formato de cartas, entrevistas, relatórios, artigos, documentos oficiais, trechos de jornais e revistas; etc. Tudo isso feito fora da lógica do teatro dramático, com suas construções de personagens e ferramentas de identificação e repulsa. Nesse gênero, cabe ao dramaturgo não a criação de cenas com unidade dramática de ação e tempo, com conflitos e atmosferas; mas a edição do vasto material compilado na pesquisa em fragmentos cênicos autônomos que entrem em choque dialético uns com os outros e que se preocupem em mostrar as contradições sociais do tema abordado e os seus múltiplos pontos de vista para que o expectador possa se posicionar.  O registro de interpretação dos atores se aproxima do que defende Walter Benjamin em um dos seus ensaios mais importantes – O Narrador.  O papel dos artistas envolvidos torna-se mais complexo, e não por acaso Peter Weiss coloca com uma das condições para sua plena realização a de ser feito por um grupo de trabalho estável com sólida formação sociológica. É preciso debater e ter opinião sólida. É preciso embasamento. É preciso posicionamento. É preciso debater todo o trabalho e não somente a parte em que cada artista está envolvido.  É preciso participar de tudo, como dizia Sêo Antônio de Gastão, sujeito e objeto de investigação desse trabalho. O território do ator deixa de ser o personagem. Passa a ser o tema, e no caso de ANTÔNIO DE GASTÃO – MEMÓRIA É TRABALHO, os temas são claros: Identidade, Memória, Cultura Popular.





Fotos dos ensaios de ANTÔNIO DE GASTÃO - MEMÓRIA É TRABALHO: Anna Fernanda.

“A experiência da arte de narrar está em vias de extinção. Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo.” Walter Benjamin.

O princípio que guia esse trabalho é simples. O Teatro menos como Espetáculo e mais como Assembléia. Que não se espere desse trabalho, ao ver a grande exigência do estudo sociológico para sua realização, o mesmo tipo de academicismo estéril que usa o conhecimento como ferramenta de manutenção de classes e coloca os poucos “doutores” em lugar de privilégio e os muitos “ignorantes” a margem como é de costume. Em todas as tradições de teatro político citadas no início desses apontamentos, e das quais somos herdeiros, há o enorme cuidado de se pensar e criar práticas e técnicas teatrais específicas que privilegiem a comunicação clara com os expectadores em detrimento de experimentalismos estéticos que não ajudem a iluminar os temas abordados. Não por acaso, há na abordagem cênica de quase todos os artistas citados o retorno a tradições teatrais populares, o que se convencionou chamar de teatro de feira.  Uma busca de se distanciar dos cânones e dos códigos do teatro burguês que falavam apenas para um tipo de público; o burguês. Lembremos que Brecht dizia, e outro Antônio, o saudoso Antônio Abujamra não nos deixava esquecer que “TODO TEATRO É POLÍTICO”. Alguns se assumem como tal, e outros não.

Esse rompimento com os cânones do teatro hegemônico é um caminho que hoje é comungado pelos artistas da En La Barca Jornadas Teatrais, ambos filhos do interior, que começaram seus caminhos na mesma Região dos Lagos narrada nos relatos de Sêo Antônio de Gastão e que mesmo radicados no Rio de Janeiro conservam, hoje, influências da terra natal que são fundamentais para a formação dos artistas e cidadãos que hoje nos tornamos. Estamos construindo um trabalho a partir da trajetória e da visão de mundo de um artista popular semi-analfabeto, que sempre foi ciente da importância de seu imenso conhecimento, e que construiu seu fazer artístico e sua militância a partir de dois fatores fundamentais: a convivência com seu grupo social e as enormes contradições políticas e econômicas que transformaram brutalmente sua terra em pouquíssimo tempo. Para se pensar um trabalho teatral que seja realmente democrático e onde qualquer indivíduo, independente da classe social ou do nível de escolaridade, possa pensar e se posicionar sobre o que está sendo mostrado, a ética e a estética devem andar de mãos dadas. A linguagem deve ser ponte entre os muitos mundos de cada indivíduo e não muro que separa os que conhecem determinadas tendências dos que as desconhecem. Além disso, o conturbado momento político que passamos também mostra que Representatividade importa sim. A arte popular, seus legítimos representantes, sua visão de mundo e sua estética devem ser vistos nos palcos e fora dele, longe do folclorismo raso que constantemente os qualifica como algo “curioso” e “pitoresco”. Arte popular é lugar de resistência, contestação, de afirmação de identidade e produção de pensamento; e deve ocupar cada vez mais o lugar que lhe é constantemente negado. Não é fácil.

“Os homens fazem a sua própria história; contudo não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles que escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas, lhes forma transmitidas assim como se encontram.” Karl Marx.


Há no Brasil, há muito tempo, um projeto interrupto de perda de identidade cultural cujos sintomas podemos perceber em toda a sociedade brasileira, mas que se apresenta de forma mais agressiva e destruidora nos lugares como Cabo Frio, onde a indústria do turismo tem seus maiores interesses econômicos. O capitalismo suas contradições. Para vender em larga escala o acesso a um lugar idílico de belas praias onde alguns pescadores ainda vivem da pesca artesanal, eles devem destruir a mentalidade, o imaginário e o modo de produção que tornam possível a existência desse mesmo lugar idílico que é objeto de desejo dos seus muitos consumidores. Nesse sentido a enorme descaracterização cultural que transformou rapidamente Cabo Frio e seus arredores não é privilégio da Região dos Lagos, mas de todos os lugares onde a indústria do turismo fez morada e onde o capitalismo pode exercer livremente sua vocação de criação destruidora. Com base nessas reflexões pode-se perceber que ANTÔNIO DE GASTÃO – MEMÓRIA É TRABALHO não se apresenta como uma operação saudosista. Antônio de Gastão foi um guardião da memória das tradições. Um tradicionalista com a visão voltada para o futuro. Se por um lado temos um olho voltado radicalmente para o passado, por outro, usamos o discurso de Sêo Antônio para dialogar com o presente buscando no expectador de hoje, agentes de reflexão e de transformação. A arte não como instrumento de interpretação do mundo, mas como ferramenta para sua mudança. Costuma-se pensar em tradição como tudo aquilo que se demarca em relação aquilo que se apresenta como moderno. É momento de descobrir que nem toda tradição é atraso. E modernidade não significa necessariamente progresso.


Antônio de Gastão e outro grande artista popular, Zé Barbosa. Foto: Acervo da família Mayall



Anna Fernanda em participação especial para ANTÔNIO DE GASTÃO - MEMÓRIA É TRABALHO. Foto: Bruno Peixoto.



Bruno Peixoto em cena. Foto: Anna Fernanda.


ANTÔNIO DE GASTÃO – MEMÓRIA É TRABALHO têm estréia prevista para abril de 2017.

Esse trabalho é carinhosamente dedicado a outro grande artista popular de Cabo Frio
- CLARÊNCIO RODRIGUES –


Apontamentos escritos em março de 2017 por:

BRUNO PEIXOTO CORDEIRO. Co-coordenador da En La Barca Jornadas Teatrais. Integrante da Companhia Ensaio Aberto. Ator.
Colaboração: ANNA FERNANDA CORREA SOARES. Co-coordenadora da En La Barca Jornadas Teatrais. Atriz. Historiadora.


Agradecimentos: José Facury Heluy, Tânia Arrabal, Silvana Lima Tavares Cavalcanti, Ivan Tavares Cavalcanti, Evangelos Pagalidis, Warley Teixeira, Flávia Gomes, Marcelo Vale, Luiz Fernando Lobo, Sabine Mendes Moura,  Moana Mayall e Ricardo Gomes Lima.



Agradecimento Especial: Museu do Folclore – Rio de Janeiro, Teatro dos Trabalhadores, Companhia Ensaio Aberto, Grupo Creche na Coxia, Grupo Moitará e Armazém da Utopia.


Principais Obras e Artigos Consultados para a criação de ANTÔNIO DE GASTÃO – MEMÓRIA É TRABALHO:

 - ANTÔNIO DE GASTÃO – PESCADOR DE CABO FRIO. Série O Artista Popular e seu Meio -  FUNARTE -  Ministério da Cultura.
- DA PESCA E OUTRAS ARTES – MEMÓRIAS DE ANTÔNIO DE GASTÃO. Ricardo Gomes Lima.
- RAÍZES DO BRASIL . Sérgio Buarque de Hollanda.
- A ARTE DO TEATRO: ENTRE TRADIÇÃO E VANGUARDA. Beatrice Picon-Vallin. Organização: Fátima Saadi
- DESCOBRIMENTO. Mário de Andrade.
- SERAFIN PONTE GRANDE. Oswald de Andrade.
- A ARTE BONEQUEIRA NA REGIÃO DOS LAGOS. Silvana Lima Tavares Cavalcanti
- ÁGUA – SEU CURSO NA HISTÓRIA (CABO FRIO, ARRAIAL DO CABO, ARMAÇÃO DOS BUZIOS, SÃO PEDRO DA ALDEIA E IGUABA GRANDE). Meri Damasceno.
- CABOFRIANÇAS. Meri Damasceno.
- MANIFESTO COMUNISTA. Karl Marx e Friedrich Engels.
- AGITIPROP: CULTURA POLÍTICA. Douglas Estevam, Iná Camargo Costa e Rafael Villas Bôas.
- O QUE É TEATRO ÉPICO. Walter Benjamin.
- O NARRADOR. Walter Benjamin.
- OS CAMINHOS DA REPRESENTAÇÃO – Gerd Bornheim
- NOTAS SOBRE O TEATRO DOCUMENTÁRIO. Peter Weiss.
- DIÁRIOS DE TRABALHO. Bertolt Brecht.
- CABO FRIO: UM SÉCULO DE CENA. José Facury Heluy.
- AMENA MAYALL – UM EXEMPLO A SEGUIR, UMA ARTE A COMPARTILHAR. Moana Mayall Vargens.
- AMENA SAUDADES MAYALL. Tomás Baggio.
- IGREJA E CEMITÉRIOS: SAGRADO E PROFANO. Rose Fernandes
- HISTÓRIAS DE PESCADOR. DADOS CULTURAIS RELEVANTES À OBSERVAÇÃO DA IDENTIDADE SOCIAL DOS PESCADORES ARTESANAIS DA GAMBOA, CABO FRIO. Rafael Peçanha de Moura
- HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E NOVAS PERSPECTIVAS. Paulo Cotia.
- TRADIÇÃO E MODERNIDADE: CONTINUIDADE E DESCONTINUIDADE. A MODERNIDADE NA OBRA DE ANTHONY GIDDENS. Alexandre Portela Barbosa.
- TRADIÇÃO E MODERNIDADE. Adriano Duarte Rodrigues.

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