O LADO NARCISO E OBSCURO DOS FESTIVAIS DE TEATRO



É um vírus que começou pequeno e discreto e que vem tomando mais corpo nos últimos anos. É mais aparente nos festivais competitivos.  E de uma forma triste, vem afastando o teatro do que deveria ser a sua real função. Os festivais de teatro vendem uma ideia ao público e outra ideia aos artistas. A ideia que vendem ao público é de certa forma cumprida. Durante um período, a população de uma região terá acesso a uma infinidade de obras com linguagens e abordagens diversas e isso não só é enriquecedor, como necessário para a formação social, cultural e crítica de todo indivíduo. A ideia que se vende aos artistas é diferente e esta, com certeza, não está sendo cumprida. Para os artistas os festivais seriam, entre outras coisas, o espaço de encontros e debates com os seus pares, onde as inúmeras questões envolvendo o fazer teatral são discutidas. Não percebem uma contradição básica. Os artistas estão competindo, e quem está competindo nunca vê o outro como um igual, mas sim como o adversário a ser batido. Que tipo de encontro ou debate pode surgir daí?  Em alguns festivais, isso chega a ser constrangedor. Não parece haver debate, mas uma pequena inquisição artística conduzida por colegas de trabalho. Esses tipos de festivais aproveitam-se de uma fraqueza histórica de nossa profissão. A dificuldade de se administrar a carreira de um trabalho e desse trabalho realmente ganhar as asas que merece. Tanto que, tristemente, a carreira de alguns trabalhos resume-se aos próprios festivais. Vencer um festival é, portanto o que pode dar novos rumos a um espetáculo. Alguns festivais acabam criando suas preferências estéticas (nunca assumidas) e muitos artistas submetem suas criações aos parâmetros sutis dessas preferências. Nos festivais de esquetes isso ganha outros contornos, já que não há nos teatros uma cultura para se receber trabalhos nesse formato. Se você cria uma esquete e quer que ela seja vista, sua única alternativa é entrar nessa estranha arena.  Quer um exemplo de como essa ideia de encontro e debate é enganosa? Antes de cada evento, muitos da classe estão ativamente empenhados na sua divulgação nas redes sociais. Depois do evento o festival só existe para os vencedores. Cada um desses “encontros” reúne dezenas de artistas das mais variados cidades e raramente se debate assuntos que não sejam do próprio festival. Nenhuma carta, nenhum documento de protesto contra as mesmas dificuldades que enfrentamos desde sempre. O prêmio vem primeiro, o teatro vem depois. Essa parece ser a ideia real. E muitos colegas compram essa ideia de se tornarem vencedores ou vencidos e continuam sustentando esse tipo de iniciativa, mesmo que muitos festivais não ofereçam nenhuma ajuda de custo. Mesmo que o artista não tenha o tempo (e o respeito) mínimo de adaptar sua obra no palco, tendo que montar e ver os meandros das questões técnicas em poucas horas ou em ínfimos minutos (como é o caso dos festivais de esquetes). É o palco que é oferecido e para isso não há negociação. São as condições que são oferecidas e para isso não há negociação. É a forma de fazer um trabalho circular. Da forma que falo, pode parecer que defendo a ideia de que os organizadores são aproveitadores e os artistas são inocentes nessa relação. Não é o caso. O que escrevo aqui é apenas um chamado para que trabalhemos no sentido de revelar a real vocação desses possíveis encontros. Sou da opinião do teatro como uma das únicas utopias possíveis. Sou da opinião do teatro como espaço multiplicador de idéias e caminhos. Um teatro contestador das armadilhas do seu tempo. Os festivais deveriam ser o espaço privilegiado onde tudo isso pudesse acontecer. Mas estão cada vez mais longe disso. Transformam-se cada vez mais em pequenos guetos onde nós artistas reproduzimos os mesmos valores e práticas que deveríamos contestar. O público continuará sendo premiado com belos trabalhos. Patrocinadores continuarão contabilizando seus lucros. Artistas e produtores irão perpetuar essa estranha relação criando os eleitos de cada ano. Mas o teatro não irá crescer com isso. Porque o teatro cresce junto do seu artista. E o teatro perde muito da sua humanidade quando os seus representantes submetem o seu fazer artístico e a sua visão de mundo aos moldes de uma ótica limitada e arcaica de vencedores e vencidos.  


A meus colegas de trabalho, meus pares, meus iguais; digo com todo respeito e carinho. Podemos ser melhores do que isso.


Bruno Peixoto Cordeiro

Comentários

  1. Concordo com vc. A maior parte dos festivais estimula mesmo a competição, e já existe uma estética mais ou menos pre-definida do que deve ser o vencedor. Triste retrato do abandono da cultura e da comercialização da arte.
    Mas acredito muito nos artistas brasileiros. A questão é que tem muita gente boa de fora desses festivais fazendo trabalho interessante, que muitas vezes nao ganha visibilidade... Infelizmente....

    Maíra Baky

    www.gruttateatro.wordpress.com

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