CULTURA POPULAR E MEMÓRIA: o “Fazimento” de uma identidade cultural na voz feminina
Por Anna Fernanda[1]
Anna Fernanda em apresentação do projeto Antônio de Gastão - Memória é Trabalho. Em 22 de Abril de 2017 no Museu de Arte Religiosa e Tradicional, em Cabo Frio/RJ. Foto: Manuela Paiva Ellon. |
Pensar o caminho
percorrido pelo Coletivo En La Barca Jornadas Teatrais é pensar o “fazimento” de uma identidade coletiva na
junção colaborativa de identidades individuais.
Pedimos emprestado o
termo “fazimento” ao antropólogo,
escritor e político brasileiro Darcy Ribeiro para definir a Segunda Edição do: Círculos
de Cultura En La Barca[2].
“Fazimento” é um substantivo
masculino cujo significado é ato ou
efeito de fazer; feitura; fazedura. Contudo hoje quero me utilizar do termo
“fazimento” para designar
substantivos femininos, substâncias femininas que fizeram, contribuíram,
construíram para a feitura de uma
identidade cultural.
Seguindo a tradição
do teatro documentário construímos nosso caminho artístico, mergulhando em
fontes e documentos históricos (cartas, documentos oficiais, fotos, etc.) para
construir a dramaturgia; atentos aos aspectos culturais, artísticos e políticos
traçando assim nossa identidade como coletivo teatral. Seguir a linha do teatro
documentário é descobrir que há outros meios de dizer, é pensar no teatro como
campo social de trocas interdisciplinares, como uma área de investigação
artística capar de repensar o sentido estético da “arte pela arte”[3].
É transformar o palco num espaço de memória social.
Nossa primeira
experiência com o teatro documentário foi o projeto teatral ANTÔNIO DE GASTÃO –
MEMÓRIA É TRABALHO, solo narrativo com o ator Bruno Peixoto, sobre memória,
identidade e cultura popular. Em seguida iniciamos o processo, ainda em
pesquisa, LUGAR DE CABEÇA LUGAR DE CORPO em parceria com o Instituto Municipal
Nise da Silveira para debater reforma psiquiátrica e luta antimanicomial por
meio de mulheres que passaram por essa experiência manicomial. E o mais recente
A CASA E O MUNDO LÁ FORA – Cartas de Paulo Freire para Nathercinha que debate o
sistema educacional brasileiro trazendo a narrativa de uma menina de nove anos
que durante os anos sessenta no Brasil, se correspondeu por cartas com o
educador Paulo Freire durante o seu período de exílio.
Em três anos
construímos três trabalhos diferentes em suas temáticas seguindo a mesma linha
de tradição teatral e construímos o que hoje denominamos de TRILOGIA DOCUMENTAL
– A VOZ DOS ANÔNIMOS. Mas o que une esses projetos? Eu poderia dizer: o caráter
social ou a voz de anônimos/silenciados que resgatamos. Tudo cabe perfeitamente
porque fazem parte desses projetos teatrais, mais principalmente o resgate da memória. Memória social,
política, cultural de pessoas, de um grupo, comunidade, de um país. Quando
tocamos na memória individual, tocamos numa memória coletiva. Como dizia a
pesquisadora Ecléa Bosi, “uma história de
vida não foi feita pra ser guardada dentro de uma gaveta”[4].
E ao resgatarmos uma, resgatamos várias.
Num momento de fluxo
intenso de informações, em que pouco registramos fatos, coisas, pessoas, o
resgate da memória é um ato de resistência. E fazer esse resgate tendo o teatro
como meio é documentar outras memórias que agora passam pela minha história de
vida, pela minha memória. Escolher um tema e registrá-lo (cultura popular, luta antimanicomial, Paulo Freire) parte da
necessidade, da curiosidade, ou até mesmo do sexto sentido, do realizador.
Os coordenadores do
coletivo En La Barca, eu, Anna, e Bruno, são filhos da mesma terra que Sêo
Antônio de Gastão descreveu no livro “Antônio
de Gastão Pescador de Cabo Frio”. Eu de São Pedro da Aldeia e ele de Cabo
Frio. Filhos que embora radicados em outra cidade, o Rio de Janeiro, conservam
e alimentam a ideia de raiz, origem, construindo pontes entre linguagens,
mundos, e não muros.
Ao trazer à cena a história de Antônio de Gastão (pescador, poeta, artista de mamulengo,
cantador de chula, contador de causos) defendemos a ideia de que
representatividade importa e muito. A arte popular e seus legítimos
representantes precisam ser conhecidos e vistos em palcos, praças, ruas e até
mesmo em igrejas, longe de um folclorismo raso que qualifica a arte popular
como algo “típico”, “pitoresco”, “curioso”. A arte popular do Sêo Antônio e de tantos outros artistas
é uma arte de resistência, de afirmação de uma identidade e de um pensamento.
A arte de Sêo Antônio é um resgate de memória local,
é um resgate da origem Cabo-Friense. A prova desse resgate é ouvir do público “Não conhecia Sêo Antônio, vou procurar
sobre ele.” ou “Eu conheci Antônio de
Gastão.”. Antônio de Gastão foi um guardião da memória e hoje nós
precisamos cuidar e preservar a memória dele, a nossa.
Quando voltamos os olhos ao passado não precisamos
pensar em algo velho, que não se fala, não se estuda, não se vê. A tradição
pode ser um instrumento de mudança e não apenas uma visão de passado. Tradição
e modernidade possuem sentidos diferentes, mas não necessariamente significam
atraso e progresso.
Falar em Antônio de Gastão como resgate de memória é
impossível não falar em Amena Mayall como “resgatadora” de memórias. Amena era natural do Rio de Janeiro,
professora de Filosofia, e chegou na Região dos Lagos para trabalhar na
secretaria de turismo na década de 70, quando Marcio Werneck era secretário de
turismo no governo do prefeito José Bonifácio. Amena andou os quatro cantos
resgatando tudo quanto era artista, Mudinho da Rasa, Chico Tabibuia, Antônio de
Gastão. Criou a MAREARTE uma coletânea popular com acervos desses artistas
populares. Nos anos 80 fundou o Centro Manoel Camargo, no Arraial do Cabo.
Fundou também a 1ª Associação de Meio Ambiente da Região da Lagoa de Araruama
(AMARLA), associação que lutou arduamente em defesa das dunas da estrada do
Arraial.
Amena
Mayall. Foto: Acervo da Família.
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Em parceria com o pesquisador e antropólogo Ricardo
Gomes Lima, juntamente com o Museu do Folclore (Ministério da Cultura e
FUNARTE), surgiu a série de livros O ARTISTA POPULAR E O SEU MEIO, na década de
80, com o intuito de resgatar histórias e cultura local através do próprio
discurso do artista, como é o caso do livro ANTÔNIO DE GASTÃO – PESCADOR DE
CABO FRIO todo feito em primeira pessoa. Foram apenas duas edições, a segunda
sobre Antônio de Gastão.
Como dizia seu Antônio “Amena foi o começo da vida da gente...”.
Amena foi precursora, do meio do mato ela buscou e
mostrou tantos homens e mulheres, guardiões da memória local. Amena foi
resgate.
Sêo Antônio de Gastão foi um desses guardiões da
memória, seu livro é um documento histórico, fonte de saberes. Poucos são os
que se propõem a ser guardiões e guardiãs. Felizes somos nós que temos uma
guardiã em Cabo Frio, e poucos sabem. Falar em memória Cabofriense, é falar na
memorialista Meri Damaceno.
Memorialista: aquele
que escreve memórias; aquele que se entrega a reminiscências e experiências
passadas.
Memorialista é uma profissão assim como doutor, historiador, pesquisador. Pouco
conhecida e pouco vista hoje em dia e de grande importância. Meri é
permanência.
Amena e Meri são figuras históricas porque são
presentes. Resgatar e falar dessas vozes é mostrar não somente a identidade
cultural de um povo mas o viés pelo qual a memória está sendo resgatada.
Numa história oficial construída por mãos masculinas
é importante ressaltar o papel de duas mulheres na construção de uma história
local.
Amena que apresentou ao mundo figuras populares que
estavam isoladas do meio social, por estarem à margem de uma dita “cultura
erudita”. Meri que continua resistindo aos muros da história dos homens quando
se coloca, quando diz o que pensa sem pudores, quando permanece como fonte,
inesgotável, de muitas histórias.
Quando possibilitamos que outros sujeitos sejam
participantes da história, desentranhamos a história oficial, revelamos e damos
a conhecer lutas e pensamentos que até o momento estavam no anonimato.
A memória é matéria prima da história, e a realidade
é marcada por elaborações, interpretações que os sujeitos fazem dela. Refletir
sobre o passado numa história feita por mulheres exige um exercício
arqueológico da memória, porque sem ela não é possível construir ou
desconstruir as identidades marcadas pelo tempo.
Resgatar a voz de Amena e de Meri é dar voz a tantas
outras mulheres sujeitas da história, é fazer um espaço de memórias para
mulheres e por mulheres. E se hoje estamos aqui reunidas, dando voz ao nosso
trabalho e ao de outras companheiras não é por consentimento, mas por
resistência e luta.
Avante companheiras.
[1] Coordenadora e
Atriz do Coletivo Teatral En La Barca Jornadas Teatrais.
[2] Texto escrito
para o: Círculos de Cultura Em La Barca – 2ª Edição, realizado no dia 05 de Julho
de 2018, no Mart Ibram – Museu de Arte Religiosa e Tradicional, em Cabo
Frio/RJ.
[3] Termo "arte pela arte" é um sistema de crenças que defende a autonomia da arte, desligando-a de razão funcionais, pedagógicas ou morais e privilegiando apenas a Estética. A origem desse conceito remonta a Aristóteles, mas só foi desenvolvido e consolidado em meados do século XVIII.
[4] BOSI, Ecléa. O Tempo Vivo da Memória: Ensaios da Psicologia Social. São Paulo: Ateliê Editorial.
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