Cadê a riqueza do princípio do mundo?
Artistas ,Mestres-Sabedores da Região dos Lagos,Rendeiras, Professores, Estudantes e Comunidade Cabista Apresentação de Antônio de Gastão - Memória é Trabalho IFRJ - Arraial do Cabo - Novembro de 2017 |
“Cadê a riqueza do princípio
do mundo?”. Essa é uma das reflexões que Seu Antonio nos convoca a fazer
durante a peça.
A primeira vez que assisti a peça “Antonio de Gastão – Memória é
Trabalho”, em junho de 2017, convidada por um amigo da escola, fui sem saber
o que esperar.
|
Até então, eu conhecia um pouquinho da história e dos saberes de
Antonio de Gastão, como pescador, porque eu estudava as histórias de pescadores
tradicionais de Arraial do Cabo e já tinha ouvido falar de Antonio de Gastão.
Mas a partir da peça pude conhecer o Antonio professor, o Antonio
filósofo, o Antonio memorialista. O Antônio, poeta, escultor, criador de
fantoches e de encenações teatrais, sendo um completo artista. Hoje, ao
rememorar essas recordações me emociono novamente, em diferentes momentos.
Na noite de junho de 2017, chegando ao Museu de Arte Religiosa e
Tradicional de Cabo Frio, percebi que o palco da peça era no centro do salão. E
que nós, plateia, ficaríamos sentados bem próximos dos atores. Quando Bruno
Peixoto começou a falar no microfone com voz grave, informando “nota de falecimento”, de modo muito
espontâneo e com as pessoas ainda chegando e se assentando na plateia, percebi
que a peça estava começando.
Trechos de gravações reais em áudio, com a voz de Antonio de Gastão,
se misturavam à voz de Bruno Peixoto, que ora encenava o pescador-professor-artista,
ora encenava o papel de um narrador. Em um baile de lembranças e imagens
cênicas, um banquinho no centro do palco, uma rede de pesca lançada ao mar-teatro,
um par de sapatos gastos, Bruno (ou Antonio de Gastão) nos avisa de que é
preciso “puxar pela memória” os acontecimentos, as histórias, as tradições e
sabedoria dos antigos e começa a nos lembrar de como aconteciam as pescarias, como
era o lançar das redes e como eram feitas as casas de estuque, barreando a
parede, e como elas eram mais resistentes, inclusive.
Apresentação no Museu de Arte Religiosa e Tradicional - MART Cabo Frio - abril de 2017 foto: Manuela Paiva Ellon |
Em novembro de 2017, Antonio de Gastão visitava a escola onde trabalho
(IFRJ – CAC) e novas emoções eram vividas, agora, com um público de professores
e estudantes. Seu Antonio professor ensinava, de modo enfático e entusiasmado,
que “É preciso participar. O jovem
precisa participar de tudo. Eu participei, por isso aprendi tanta coisa”, convocando
todos a participar. Mas participar como? Participar de que? Acredito que essa
convocação de Antonio é para que participemos da dança da vida e que experimentemos
as vivências e oportunidades ímpares de aprendizado do dia a dia, com os mais
velhos, com os outros e conosco mesmo. Colocar a mão na massa, na terra, na
enxada, no barro, na rede, no lápis ou no teclado de um computador, mas,
principalmente, colocar a mão nas pessoas. Tocar as pessoas, física e
simbolicamente, transformando vidas e sendo transformado. Aprender com as
pessoas. Trazer para a materialidade ideias e ideais, tal qual ele fazia com
seu teatro de pantomimas.
E participar é tão fundamental na perspectiva de Antonio que a plateia
participava e interagia com os atores, durante a peça, não somente na troca de
olhares intensos e emocionados, mas também quando nos eram distribuídas
fotografias e histórias de moradores antigos e legítimos de Cabo Frio. Afinal,
“para Seu Antonio, os nomes são
importantes. Não devem ser esquecidos”, como dizia Anna Fernanda em uma
cena. Muitos nomes e vidas eram lembrados, como Zé Barbosa, Dona Maria Miúda e
Vadico e também costumes, como quando Anna entoa com sua voz doce cantigas da
época “Jacuba, Jacuba, fortificante da
pobreza. Quem brinca com lealdade, deixa fama na cidade”. Era Seu Antonio
memorialista nos ajudando na vital tarefa de reencontrar nossas raízes, nossos
começos, nossos mais velhos, nossa riqueza, ouvindo e aprendendo com eles.
De repente, de uma caixa de bonecos, onde também se encontravam
réplicas das ferramentas usadas por Seu Antonio, surgiam os fantoches, ou
pantomimas, como as que ele usava em seus trabalhos teatrais. Era Seu Antonio
artista e criador de fantoches que encontrávamos, neste momento. Havia,
inclusive, uma pantomima do próprio Antonio de Gastão, que lindamente fazia
duetos e conversava com Bruno (e com Anna) em diferentes momentos da cena. E ao
lembrar que “Memória é trabalho” e
instrumento de resistência, Anna cita trechos de Ecléa Bosi, datilografados em
uma folha de papel que é retirada de uma máquina de escrever antiga, que, em um
dado momento, vinha ao centro da cena. Anna/Ecléa nos lembrava de que “uma história de vida não é feita pra ser
arquivada e guardada na gaveta”. Certamente não é! Tanto não é que Seu
Antonio, e com ele tantas outras pessoas, tradições e histórias, ganham vida
cada vez que essas cenas se repetem, emocionando e encantando as plateias.
Seu Antonio filósofo (e de novo professor), eu encontrava quando ele
nos dizia (junto de Bruno) que “a parte
que me ocupo é uma ciência que tá dentro da consciência. No cérebro de toda
humanidade, é preciso ir buscar esse lugar para descobrir o grande professor
inteligente que vive na alma de cada criatura”. Nesse dizer, Seu Antonio
nos lembra de que seus saberes, suas reflexões, sua tradição também é ciência e
de que cada criatura tem esse potencial de “grande
professor inteligente” a ser realizado em si. Da mesma maneira que antes
ele nos convocava a participar, aqui, ele nos convoca a pensar, a questionar, a
criar, a produzir a ciência de todo dia. Ele faz importantes críticas à divisão
de pessoas entre quem sabe e quem faz, ou entre os intelectuais e os
trabalhadores braçais, e sua consequente hierarquia econômica e social. Seu
Antonio produziu ciência, porque participou, porque pensou, porque colocou a
mão na massa e porque não dissociou o saber do fazer, ou a teoria da
prática.
Rendeiras de Arraial do Cabo participando da apresentação de Antônio de Gastão - Memória é Trabalho Prainha - Arraial do Cabo Agosto de 2019 foto: Maria Aparecida |
Em agosto de 2019, Antonio Gastão visitou a Prainha, em Arraial do
Cabo, e a peça foi encenada na rua, no paiol dos pescadores da Prainha. Foi
novamente muito emocionante ver rostos diferentes, moradores do bairro da
Prainha, pescadores locais, (re)conhecendo a história e a ciência de Seu
Antonio. E por falar nas divisões sociais e nas ilusões que a vida social apresenta,
Seu Antonio questionava a maneira como historiadores oficiais contavam a
história de Cabo Frio, nos livros, sendo diferente da sua experiência, da sua
participação, da sua vivência e da sua ciência. Por que não foram perguntar
para Seu Antonio o que aconteceu? Ou se perguntaram, por que escreveram
diferente do relato dele? Seu Antonio professor-filósofo-memorialista-artista
nos alerta numa inscrição em giz, na capa de um livro, que “a gente escreve o que ouve, nunca o que
houve” e nos deixa reflexivos sobre as hierarquias também existentes entre
quem vive a história e quem escreve a história e sobre quais versões ou quais
vozes vimos legitimando, repetindo e valorizando ao longo dos anos e nas nossas
escolhas e posicionamentos mais corriqueiros.
Na última cena, ouvimos mais uma vez, na voz doce de Anna, as
lembranças do tempo do Seu Antonio, na cantiga do Divino Espírito Santo “Eu entrei nessa casa, ôôô”. Seu Antonio
entrou em muitas casas em vida e, hoje, pelas memórias materializadas na peça
continua entrando em escolas, museus, praças públicas. Mas mais do que entrar
nesses espaços, ele, com sua sabedoria, mansidão e leveza de espírito entra em
nossos corações e em nossas vidas e nos convoca a pensar que “memória é
trabalho” a ser feito, a ser mantido, a ser resgatado, a ser (re)conhecido, a
ser respeitado.
Salve, Antônio de Gastão, e todos os mais velhos, nossos mestres e
mestras, que vieram antes de nós e permitiram nosso caminhar hoje. Que possamos
continuar lhes rememorando e com os senhores aprendendo.
Maria Aparecida*
*Professora do IFRJ – campus
Arraial do Cabo, fã de cadeirinha e colaboradora do En La Barca Jornadas
Teatrais e eterna aprendiz de Antonio de Gastão e outros mestre sabedores
Comentários
Postar um comentário