“Antônio de Gastão - Memória é Trabalho”: um trabalho decolonial da memória.




Por Natália Gadiolli[1]

Anna Fernanda em ANTÔNIO DE GASTÃO - Memória é Trabalho.  Centro de Artes da UERJ.
Foto: George Magaraia
   

“Não esperem encontrar na narrativa de Seu Antônio a presença de sobrenomes ilustres que marcam ruas, vias, praças e pontes da cidade. Os heróis de Seu Antônio são pessoas como ele. Gente do povo. Seu Antônio faz parte de uma tradição. Registrado com o nome de seu avô, Antônio de Barros da Cruz, recebeu como reforço o de Gastão. É o Antônio, filho do pescador Gastão Freire Sardinha.”[2]

Quem é filho do interior, quem nasceu em lugarejos pequenos sabe bem como é isso, de ser o Fulano de Ciclana, ou a Ciclana de Beltrano. Eu, que também nasci numa cidade pequena - bem menor que Cabo Frio, a cidade de Antônio de Gastão - também já fui apresentada várias vezes como a Natália da Leia ou a Natália do Veio Mica – apelido de meu pai. Esse é o primeiro reforço. Às vezes vem acompanhado do que seus pais fazem – Natália da Leia, que trabalha na prefeitura -, de quem eles são filhos – Natália da Leia do Seu Zé Gadiolli -, de referências da rua onde você mora – Natália da Leia, da rua do Missionários. E assim, nas pequenas relações, nessas micro-histórias individuais se conta a história de um coletivo, de um bairro, de uma cidade. Esse foi um dos caminhos que a peça fez trabalhar minha memória.

Aqui já encontramos a primeira relação desse trabalho com o pensamento decolonial, pois se trata de descolonizar o saber e pensar por outras epistemologias, trata-se também de olhar para a construção do nosso saber e de identificar o que nos coloniza, para encontrar outras maneiras de contar nossa própria história, à nossa maneira. Como Antônio de Gastão conta a dele e como uma peça de teatro conta a dela.

Antônio de Gastão
Foto: Acervo do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular - Museu Edson Carneiro


“Antônio de Gastão – Memória é Trabalho” é uma peça de teatro documentário do coletivo En La Barca Jornadas Teatrais, da atriz e historiadora Anna Fernanda e do ator Bruno Peixoto, ambos filhos do interior, que começaram seus caminhos na mesma Região dos Lagos, narrada por Seu Antônio. É a memória de Cabo Frio, a partir do relato de um artista popular, poeta, escultor, músico, trovador, bonequeiro, contador de histórias, um artista popular e pescador, conterrâneo dos artistas que (re)contam essa história, que trazem à cena a visão de mundo desse homem simples, semi-analfabeto, mas sempre ciente da importância de seus conhecimentos, seus saberes, suas verdades. Também cientes da importância do trabalho que realizam, os realizadores entendem a arte popular e seus legítimos representantes como lugar e vozes de resistência, contestação, de afirmação de identidade e produção de pensamento, que deve assumir o lugar que lhe é constantemente negado.

A dramaturgia é uma montagem historiográfica, que traz a história de um lugar e suas transformações ao longo do século XX a partir de uma micro-história – uma história oral transcrita num livro em primeira pessoa -, pela perspectiva principal de um morador muito peculiar, que não participou da “história oficial”, mas participou da construção de uma memória, de uma tradição, de um povo, que estão do outro lado de uma linha imaginária, porém muito concreta, delimitada pelos colonizadores, nossos colonizadores.

Nesse território “sem lei”, abaixo da linha abissal[3], de que nos fala Boaventura de Sousa Santos[4], estão tantas histórias invisibilizadas, porque consideradas irrelevantes ou incompreensíveis pela epistemologia sócio-política e artisticamente dominante. Nessa peça, no entanto, o reconhecimento da concretude de uma história de vida que narra também a história de um grupo, de um meio social é já uma outra forma de apresentar a realidade, por uma ótica decolonial, que coloca em primeira pessoa, o artista popular, enquanto sujeito histórico e criador consciente.

Não se trata apenas de resgatar uma memória, mas de ser essa memória no presente, em cada documento, em cada carta, em cada foto, no livro – lançado fiel ao desejo do velho artista popular - na voz do Seu Antônio gravada numa fita cassete, reproduzida com todos os seus ruídos, nos bonecos, em cada material que se apresenta para fazer trabalhar essa memória hoje, de ser a história de novo ou uma nova história para questioná-la em sua amplitude, interrogando seus meios materiais e conceituais e sua difusão social. Não é lembrar de Seu Antônio com saudosismo, mas construir essa história da história por meio da participação direta desse artista no relato dos artistas que o contam. Não se trata de dar relevância ou fazer compreender essa história, mas mostrar uma verdade em si, descolonizar um saber e tornar visível uma existência que a cultura dominante categoriza como menor. E não é que encubra, é que simplesmente não vê, porque não quer ver, desconhece. É um fazer-se conhecer.

  Bruno Peixoto em ANTÔNIO DE GASTÃO - Memória é Trabalho. Centro de Artes da UERJ.
Foto: George Magaraia


É, portanto, um coletivo que também se faz conhecer por suas origens. As histórias se atravessam. Que fala de seu lugar através de uma fala legítima, participativa, criadora e perpetuadora. As falas se atravessam. Que dá nome aos anônimos, que não contam a história deles, enquanto artistas, mas enquanto uma gente. As vidas se atravessam. A história de Seu Antônio, de Bruno e de Anna e de cada um que surge nessa história é a história de uma gente, de uma cidade, de uma região, de uma arte, de um trabalho. Não é “crença, opinião, magia, idolatria, entendimento intuitivo ou subjetivo”[5], como poderia supor o outro lado da linha que ainda dita muitas regras. Pode até ter tudo isso em menor ou maior grau, mas é um conhecimento real. É a verdade dessa gente, dessa terra, desses artistas.

Ao colocar esse saber num lugar de discurso oficial, de propriedade de fala, a peça “Antônio de Gastão – Memória é Trabalho”, torna a memória o objeto de uma história possível e coloca essa memória em trabalho decolonial, olhando para si e falando de si, por si e para si. Porque esse “si” também somos nós, os espectadores. É por essa fonte que eu, espectadora, tenho acesso à história de Cabo Frio fazendo sua própria história. E isso não é posto em questão. O que se ouve - e se vê - ali é o que houve lá.
  



[1] Atriz e graduanda em Estética e Teoria do Teatro, pela UNIRIO.
[2] Trecho da peça “Antônio de Gastão – Memória é trabalho”.

[3] SANTOS, Boaventura S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estudos – CEBRAP, nº79, São Paulo, 2007. In: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002007000300004.

[4] Boaventura de Sousa Santos é português, Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal) e da Universidade de Warwick (Inglaterra). Tem trabalhos publicados sobre globalização, sociologia do direito, epistemologia, democracia e direitos humanos.
[5] In: SANTOS, Boaventura S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estudos – CEBRAP, nº79, São Paulo, 2007. In: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002007000300004.


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